sábado, 15 de setembro de 2007

A Mulher Madura

A Mulher Madura

Affonso Romano de Sant'Anna


O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.

De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.

Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.

Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

(15.9.85)

7 comentários:

Mariana disse...

Que lindo...
Que é o autor?
Bjo.

Beto disse...

Oi Mari.

O autor é o Affonso Romano de Sant'Anna. Ele é um poeta mineiro que foi cronista do Jornal do Brasil e presidente da Biblioteca Nacional.

Esse poema/crônica sobre a mulher madura é um texto que descobri recentemente. Eu gostaria de ter lido ele anos atrás.

Como vc fez um excelete trabalho de divulgação do blog, e praticamente só tenho leitoras, achei mais do que merecido esse post para homenagear vcs mulheres cheias de sabedoria, elegância e charme.

E a este separado fica a esperança de, vez ou outra, poder ter a chance de ser um espelho e lembrar a uma mulher madura exatamente isso.

Beijos...

Mariana disse...

Tenho certeza de que as leitoras vão amar! Se todos os separados fossem iguais a vc... Esse Romano não é parente de um certo Romano mineiro que nós dois conhecemos não, né?

Anônimo disse...

Ah, eu estou pronta pra ir à Grécia e outros tantos lugares... Como estou!

Adorei moço! :**

Isa Zeta disse...

É possível levar um pé na bunda pra não tomar na cabeça?

blog legal o seu.

Beto disse...

Oi Iza! Bemvinda ao blog!

Levar um pé na bunda e tomar na cabeça geralmente vem juntos, principalmente quando vc cai de cara no chão.

Mas tomar na cabeça não é necessariamente de todo ruim. Essas pancadas acabam nos deixando mais espertos e passamos a perceber que tem muito mais coisas divertidas do que imaginávamos.

Bjo!!

Simone Iwasso disse...

esse é daqueles textos que é bom tirar de vez em quando da gaveta - para chacoalhar tanto homens quanto mulheres. palavras que embalam para algo melhor!